quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Vasco, o retratista

Consta por aí (uma simpática leitora até me escreveu a informar disso) que em três pinceladas Vasco Pulido Valente pintou no Público o retrato certeiro e definitivo do Portugal recente — com o nobre intuito de fazer o enterro do socialismo. Um reverente blogue de direita reuniu as palavras sagradas num post que pode ser lido neste link. (A direita sempre precisou de um papa, e em Portugal a oferta aumentou exponencialmente nos últimos tempos, mas algumas almas fascinadas parecem tê-lo encontrado sobretudo na encantadora figura do decano cronista.)

Despertado na minha caverna pelo correio amável que me enviaram, lá fui eu ler a trilogia pulidiana “Esquerda e direita”, prometendo a mim próprio não voltar a embirrar com o homem. Em vão.
Como retratista, Vasco não usa a paleta toda, pelo que as suas telas resultam um pouco artificiais. Aquilo é real, sabemos penosamente que sim, o autor tem talento para o desenho. Mas, como recusa uma mais plausível prolixidade cromática nos acabamentos, a obra parece velada por uma fina gaze, como se o mestre pusesse um filtro à frente do olho que deita ao modelo. Num relance, chega a parecer uma daquelas gravuras vendidas em lojas de decoração que apostam numa limitada gama de cores: uma serra em escala de azuis, o pôr-do-sol em escala de laranjas, estão a ver o género.

Sem piedade, a trilogia conclui que o socialismo (ou a social-democracia) foi responsável pela crise nacional e europeia — e o Estado Social foi o seu instrumento. Ora, os americanos, mormente a feroz percentagem republicana deles, parecem não concordar. Começam, aliás, por não concordar que exista uma crise europeia. Parece, diz-se na campanha republicana, que a pátria da liberdade (e da recusa do Estado Social) está terrivelmente endividada, tem um défice preocupante, cresce menos do que desejaria, entrará provavelmente em recessão, vê o desemprego aumentar com perigo para a estabilidade social, etc. Os sintomas, dirão eles para proteger o orgulho ianque, são “europeus”, agravados por um presidente “socialista”. Mas nós sabemos o quão socialista Obama tem podido ser, e como a economia americana divergiu profundamente da sua ortodoxia.

O retrato pulidesco tem assim, talvez, de ser retocado — antes que os óleos sequem. (Depois disso, só uma equipa de restauradores do Louvre o poderá fazer, e nós não temos assim tanto tempo para esperar.) Se eu próprio não tivesse abandonado os pincéis e o atrevimento, propunha portanto ao insigne artista que matizasse a sua tela com uma das duas seguintes cores (ou ambas):

1) Talvez não tenha sido a social-democracia a falhar, mas o próprio capitalismo, tal como posto em prática;
2) O despesismo, a corrupção, a incompetência da máquina fiscal, a mitigada redistribuição de rendimentos, a especulação financeira, etc. são em si responsáveis pela crise, independentemente do sistema em que ocorrem.

(Quando se pinta um retrato de uma entidade viva, convinha, de resto, não esquecer 2008. A elipse foi uma figura de estilo inventada por Estaline para a fotografia, não para a pintura.)

Claro que o pulido cronista, quando isso não lhe atrapalha a argumentação para uso no flagelo doméstico, estende o problema ao Ocidente inteiro, sem que então lhe interesse assim tanto distinguir sistemas. Ou seja, para ele a peçonha é, consoante os dias, uma particularidade da Europa (que tem no socialismo e em Portugal os seus mais desprezíveis cultores) ou do Ocidente inteiro (se a prosa tiver uma ambição mais universal e exacta e menos luso-moralista). De uma forma ou doutra (e aqui não se engana nada), a crise é dos países que tiveram preocupações com o bem-estar dos cidadãos. Daí alguma direita (não só ela) andar agora fascinada com a China, esse sábio sistema que aproveita o melhor do capitalismo sem se tornar sentimental. Os sentimentos sempre foram um empecilho quando se trata de criar riqueza. Para alguns. 

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