segunda-feira, 30 de julho de 2012

Diário de férias (6)

Numa ocasião, pedi que cancelassem o meu pedido e abandonei de seguida um restaurante onde alguém mudou a televisão de canal sem consultar os comensais. Foi um gesto de indignação e protesto genericamente legítimo, mas no meu caso de certo modo exagerado, de uma grandiloquência desnecessária. Eu era cliente diário da casa e, ainda que naquela noite estivesse de olhos na TV, quase sempre lia um jornal ou um livro enquanto comia. Quero dizer, ninguém estava à espera que de entre os clientes fosse eu a importar-me com o canal que o estabelecimento sintonizava.
Tinham passado de um programa informativo para um jogo de futebol — e naquela época eu era suficientemente cândido e voluntarioso para me tentar opor ao fascismo da bola, à ditadura das massas simpatizantes.
Entretanto soçobrei ao pessimismo, ao cinismo, procuro não ser proselitista. O que não facilita a vida, diga-se. Tentarmos ser livres passivamente poupa-nos a discussões inúteis, ao embaraço e à maçada de sermos sempre reivindicativos e queixosos, audivelmente, iradamente — mas reduz-nos as opções. Por vezes, deixa-nos mesmo sem opções na hora de sair, dado o carácter eminentemente ademocrático, ferozmente contra soluções alternativas, da sociedade de massas. Observemos os carneiros ali no campo: para onde vai um vão todos. So much for human superiority.
Contudo, há ainda em mim uma nostalgia bombista. Não que alguma vez o tivesse sido. Infelizmente nunca tive essa coragem e essa eloquência. É uma nostalgia do tempo em que aspirava a uma grande carreira na arte da, digamos, argumentação.
Sexta-feira demo-nos ao trabalho de fazer uns quilómetros para jantar em nenhures, fiados em sugestão de gente amiga. Boa comida em conta. Lá chegados, desilusão: numa província onde a boa arquitectura tradicional sobrevive e em muitos casos domina, sai-nos uma vivenda de dois pisos que tanto ficaria mal em Trás-os-Montes como no Minho. No Alentejo fica péssima. Desilusão: o famoso prato (nada de transcendental) tem de se encomendar com antecedência. Desilusão: já nem sequer há batatas gratinadas. Comemos uma enorme costeleta (não fosse a Senhora da Graça de Padrões junto a terra de mineiros) e estava bastante boa — mas também perto do meu alpendre de Verão há onde se comam boas costeletas.
A nostalgia bombista acometeu-me no momento em que de repente a sintonia da televisão (sim, O Pereira é um desses estabelecimentos que têm televisão) foi mudada para, adivinharam, um jogo de futebol. Na sala de jantar estávamos nós e uma família interessada na cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos. No bar, com o comando na mão apontado a outro ecrã, estava o dono da casa.
Mudar para um jogo de futebol é o que se espera de um bom português e o acto, a atenção, o sentido de oportunidade, tudo isso é aplaudido em coro pela pátria — munida de bandeirinhas chinesas e essa vuvuzela a que chamam garganta. Ao sr. Pereira jamais teria corrido estar a ser indelicado, deselegante, desrespeitador da sua clientela. Consigo mesmo imaginá-lo enfastiado, ou talvez até pressuroso, a procurar um jogo de futebol, não para ele, mas para nos servir de extra, como quem cumpre um dever ou vai mais além e mostra generosidade.
Tanta generosidade aqueceu-me o espírito, como o Vesúvio antes de cuspir sobre Pompeia. No entanto, em vez de fazer um favor à arquitectura e simultaneamente vingar todos os que gostam de batatas gratinadas — implodindo O Pereira —, saí ordeiramente, portuguesmente, pagando a conta. O protesto, clamoroso, ficou apenas na recusa de deixar gorjeta — penalizando a única pessoa que esboçou desagrado perante a bruteza de macho luso do patrão, a empregada.
Rememorando agora o jantar na sombra do meu alpendre, quando o momento me parece tão distante quanto em geral me parece a humanidade, a minha complacência foi por instantes substituída pelo remorso. Ah, que saudades de ter sido cândido, voluntarioso — e bombista.

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