domingo, 19 de agosto de 2012

A acordeonista

A excursão desce do autocarro para lanchar. Saem do porão os comes e bebes, as arcas e os copos descartáveis, os garrafões e os banquinhos articulados. Para o fim do repasto, quando os ânimos estão aquecidos e as gargantas anseiam pela desgarrada, sai o acordeão. É uma adolescente que o carrega e é ela que o tocará. Com um olhar distante: o rosto voltado para o rio, para a estrada, para as crianças nos balouços, para as copas das árvores, raramente encarando as teclas que prime ou os cantadores que se desafiam e os foliões que os rodeiam. Dos dedos saltitantes saem-lhe melodias tradicionais, populares, faceiras, por vezes com letras apimentadas. Mas a sua expressão não se altera, não transparece a alegria das peças que a acordeonista executa nem ruboresce com as palavras brejeiras que os outros cantam. A sua expressão permanece neutra. Talvez entediada. Talvez desolada. Talvez desesperada. Amaldiçoando a vocação, o talento. Amaldiçoando-se por o ter deixado manifestar-se e pelos dias de aprendizagem e treino. Se fosse duma família aristocrata do século XIX, talvez a tivessem forçado às aulas de piano — e os seus recitais nos serões que a família ofereceria seriam igualmente mecânicos, contrariados, ao serviço de interesses e gostos que não seriam os seus, não seriam os de mademoiselle Bovary.

3 comentários:

  1. Gostei imenso de ler este seu texto. Transparece dele o espírito e o colorido destes grupos excursionistas que passeiam pelo país. Há tempos presenciei uma cena muito parecida na Régua. Junto ao rio parou um autocarro de onde saíu um grupo de veraneantes e, entre eles, uma rapariguinha com um acordeão e, também esta, parecia fazer um grande esforço para parecer integrada no ambiente dos restantes.

    Não me ocorreu, na altura, a analogia com as entediadas rapariguitas que entretinham os serões de família ou de amigos nas casas abastadas de outros tempos; mas faz sentido.

    Bom domingo!

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  2. pese o romantismo do texto, não me preocuparia muito com esta acordeonista, pois pelo menos dá música com o seu acordeon (mesmo que não seja a preferida), quando outros músicos passam o dia a encher prateleiras de hipermercados de produtos para a febre.

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