quarta-feira, 18 de março de 2015

Gostava do tic tic tic tic da tesoura

«Aparava o cabelo de quinze em quinze dias e escanhoava a barba todas as manhãs, bem cedo. Por vezes, se ia haver baile à noite no Casino, ou algum sarau de nota no Hotel, passava novamente ao final da tarde na barbearia para que lhe fosse devolvida a face macia. Não adivinhava quando o destino lhe iria conceder a possibilidade de aproximar a cara ao rosto de uma mulher, mas ia querer estar prevenido. O bigode, encostado ao lábio superior e cortado à escovinha, era também alvo do seu zelo e da dedicação profissional do barbeiro. Nunca lhe passou pela ideia rapá-lo, como alguns faziam, embora em certas alturas se pusesse ao espelho a imaginar o que aconteceria na hora de beijar. Pelo sim, pelo não, escolhera um modelo curto e mantinha-o sob vigilância da tesoura.
A natureza favorecera-o, cedo deixara de ser imberbe e a vasta pilosidade tinha crescimento rápido. Isto causava os seus incómodos, perdia muito tempo no barbeiro. Mas sentia-se viril e, como sabia escolher bem o artífice, raramente dava por perdidas as horas dedicadas ao apuro da fácies.
Os outros homens da família tratavam do aprumo recorrendo aos serviços que o Hotel do Norte proporcionava. Ele não lhes seguia as pisadas, não nesta matéria. Descobrira muito cedo a barbearia na saída norte do Parque, ainda pela mão do avô materno, que tinha as suas excentricidades e gostava de confraternizar com a população local. Mesmo que com o crescimento viesse a distanciar-se das ousadias do avô, não mais esqueceu o caminho daquele pequeno estabelecimento de uma só cadeira, e logo que teve autonomia decidiu que trataria ali do aspecto.
Não saberia explicar por que e não se questionava. No Hotel havia talvez uma partilha excessiva de intimidades, eram aviados aos três em frente ao mesmo espelho corrido e nas cadeiras de espera ficavam todos os outros a olhar. Ali, na barbearia do bairro, havia aspectos mais deploráveis, claro: a clientela não era selecta, acorriam também agricultores e operários, com pescoços surrados e doses de piolhos. Mas ele não conhecia ninguém e os outros, pelo contrário, sabiam muito bem quem ele era, cedendo a vez, desfazendo-se em vénias e ademanes, mantendo distância e guardando silêncio sempre que ele entrava e abanava o rosto com o chapéu, para afastar os cheiros.
Nunca confraternizava com os nativos. A barbearia esvaziava-se, ainda que ele pressentisse através da porta os olhares tímidos e reverentes do outro lado da estrada. Aguardava que o barbeiro espanasse com esmero a cadeira e, mal se sentava, lembrava-lhe a necessidade de passar os instrumentos pelo álcool uma segunda vez. Depois relaxava e entregava-se às mãos compridas, ossudas e experientes, sentindo um enlevo que o tornava dócil, manietável, paciente. Regia com uma ponta de desconsolo à notícia de que o serviço estava pronto e encontrava sempre um reparo a fazer que lhe permitia um encore na prestação do mestre.
Gostava do tic tic tic tic da tesoura no ar à volta da sua cabeça, das poses do barbeiro, pernas flectidas, braços levantados, a olhar a obra de diversos ângulos, directamente e no espelho. Por cada estocada no cabelo a tesoura repetia meia dúzia no vácuo, em preparativos sonoros, aquecimento de atleta antes do salto. Ele aprovava este método perdulário, jamais censurava o desperdício de energia e a lentidão, entregava-se-lhe. O espanador no rosto e no pescoço a seguir ao corte causava-lhe volúpia, e depois abria com prazer os braços para que lhe fosse escovado o fato.
Tinha vinte e seis anos e nunca beijara uma mulher.»

in Hotel do Norte (2009)

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