sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Nunca tinha pensado nisso

«Nunca tinha pensado nisso, mas os mosaicos da nossa casa-de-banho, para onde jorravam clandestinas as minhas primeiras golfadas de sémen, eram iguais aos da cozinha dela. Ainda que o chão da madrinha fosse anterior, tenho a certeza de que não houve nenhuma intenção irónica da parte do meu pai quando ele se ajoelhou no local onde colocaria a retrete a assentar com ferramentas emprestadas aquelas tijoleiras que formavam um padrão geométrico trompe-l’oeil de degraus tridimensionais capaz de nos baralhar o sentido da visão como se tivesse sido desenhado por Escher. Estou convencido de que os mosaicos da nossa minúscula casa-de-banho eram sobras da cozinha dela, doadas com aquele misto de condescendência feudal e arrependimento avaro que lhe retorcia os lábios sempre que hesitava na avaliação do seu próprio acto. A madrinha gostava de se imaginar próspera ao ponto de se permitir uma prodigalidade indiferente, mas para sua infelicidade ela não tinha como ignorar a falência da empresa e o seu próprio carácter, de que não fazia parte a empatia. Daí aquela luta consigo mesma, visível e perenemente fixada no esgar do rosto. O meu pai, pelo seu lado, desconhecia as virtudes catárticas da ironia e nunca lhe ocorreriam pensamentos menos dignos ao sentar-se naquela sanita com vista para o puzzle vertiginoso que desenhava no chão a cerâmica esmolada.

A mim, sim, ocorria toda a espécie de pensamentos insultuosos, excepto os que envolviam a líbido. Quando era uma presença regular na minha vida, a madrinha não passara há muito os quarenta anos, mas para os meus olhos era uma velha, e eu atribuía o volume e a firmeza aguda — bélica, de obus alemão — dos seus grandes seios a soutiens antiquados feitos de arame e renda, não a quaisquer qualidades eróticas do seu próprio corpo.
A ironia — e também a epifania, chamemos-lhe assim — era eu ter-me recordado da madrinha quando hospedado na Quinta de Pompeia descobri que o quarto-de-banho da suite e a cozinha semi-rústica da casa principal estavam recobertos com o mesmo tipo de mosaicos, possivelmente fabricados na década em que eles eram modernos (a mesma da minha infância), tal o afã tradicionalista e o desejo de genuinidade que tinham presidido à reconstrução da Quinta.

Tenho uma propensão para reparar em mosaicos. Herdei do meu pai o carácter introspectivo e o infame hábito de manter o olhar baixo, serviçal, como as castas inferiores na sua congénita prontidão para aceitar o menosprezo, ou como os judeus demasiado perplexos com o que lhes acontecia em Auschwitz para sequer pensarem em reagir. Na selva das relações sociais, um olhar baixo é um convite aos predadores. A menos agressiva ou hostil das criaturas sente o apelo do sangue e uma força dominadora se à sua frente encontra um humilde de cerviz curvada. Não há como negar razão ao aforismo perante estes factos: todos os homens são maus, basta terem a sua oportunidade.»

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