sábado, 12 de dezembro de 2015

Miasma

«Também havia a voz. A madrinha tinha uma daquelas vozes afectadas de lady inglesa, oscilando entre agudos e graves como um adolescente a amadurecer, mas com o sotaque carregado, as vogais rudes e as interjeições dum lavrador. Agora que dedico algum tempo a pensar nisso, não era com a nobreza britânica que a madrinha mais se parecia, mas com as preceptoras da nobreza britânica. Quando lhe ouvíamos a voz a progredir pelos corredores e pelas divisões da casa, espécie de miasma que se infiltrava por qualquer frincha e a qualquer hora, o nosso estremecimento não era de súbditos receosos do alcance do poder real, mas de pupilos que odeiam e temem a velha ama germânica que a família mantém como tradição orgulhosa nas folhas de pagamento mensais. (Qualquer comparação com bruxas verrugosas e histéricas teria igualmente cabimento: a madrinha parecia ter sido concebida ou treinada para ser prova de verosimilhança de todos os clichés.)
Um verdadeiro fenómeno era a sua gargalhada. Já imaginaram alguém dar sonoras gargalhadas sem que no seu rosto houvesse um indício de riso ou divertimento? A madrinha não tinha humor (embora utilizasse doses regulares de sarcasmo), mas isso não a impedia de acompanhar (e na verdade suplantar) as reacções a certos comentários ou piadas que se produziam à mesa. Ela gargalhava com a mesma força de quem expele um osso de frango da garganta, percutindo as paredes da sala como o equipamento sobredimensionado de uma discoteca ou fazendo drapejar os cortinados como um vento dos que activam avisos da meteorologia, mas os seus olhos mantinham a mesma vigilância censória e fria sobre os circunstantes, não traíam um único momento de cumplicidade ou empatia.   
A madrinha zelava pela casa e pelas tradições com o empenho exacerbado e anacrónico de aias e ministros de casas reais que na devida altura advertiram os senhores para os perigos dos caminhos que trilhavam. Ela tivera razão antes de tempo, mas não lhe cabia tomar as decisões (era uma matriarca que reconhecia a legitimidade do poder patriarcal), e quando o pôde fazer, demasiado tarde para evitar a queda em desgraça, já não conseguia deixar de agir como o último dos miguelistas — o ódio, a frustração e o desejo de vingança a dominarem cada segundo do dia.»

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