[de um trabalho em curso]
«Aos domingos,
a minha mãe era capaz de passar as primeiras horas da manhã a ler um livro de
poesia e levantar-se a seguir do seu sofá junto à janela para ir matar um
coelho ou uma galinha para o almoço. Aos coelhos segurava-os pelas pernas traseiras,
de cabeça para baixo, e aplicava-lhes uma pancada seca na nuca com a mão em
cutelo. Por vezes precisava de meia dúzia de pancadas e, entre os golpes, o
animal ficava a contorcer-se, em agonia e espasmos. Às galinhas metia-as
debaixo do braço, dobrando-lhe o bico para o pescoço com a mão esquerda, de
modo a expor-lhe a parte de trás da cabeça onde iria cortar com uma faca até à
morte do animal. Não me recordo — porque sempre procurei fingir que aqueles
episódios da nossa vida não existiam —, mas julgo que este método a haveria de
sujar de sangue. O coelho ou a galinha eram a seguir despidos da pele ou das
penas na banca da cozinha. Depois do choque insuportável que era para mim a
morte dos animais, o processamento da galinha era-me menos dorido, se calhava
passar na cozinha durante a preparação. As galinhas eram menos consideradas,
não só na nossa casa, tratava-se de um aspecto cultural generalizado. As
crianças eram levadas a ver os pintainhos, mas depois de eles crescerem e
ganharem penas, se assemelharem às galinhas adultas, não recebiam mais afectos,
eram simplesmente tolerados à solta pelo quintal. Os coelhos, contudo, tinham
um estatuto próximo dos animais de estimação. Embora raramente saíssem das suas
coelheiras, onde eram mantidos até ao dia em que fossem chamados a ser a
iguaria na refeição, estabelecíamos com eles uma relação mais duradoura. Eu não
percebia como depois a minha mãe era capaz de lhes pegar com toda a frieza ou
indiferença para os espancar até à morte. Uma das vezes em que inadvertidamente
entrei na cozinha a meio do sacrifício, reconheci o bicho e fiz uma cena de
choro e berraria. A minha mãe procurou com serenidade explicar-me que aquela
era a ordem natural das coisas. Perguntou-me se eu não gostava de comer coelho
estufado, que era o prato que iria preparar (e sabia que eu gostava), e
convidou-me a ajudá-la a tirar-lhe a pele. Fiquei horrorizada, mas
simultaneamente paralisada. Enquanto a galinha depenada simplesmente se
assemelhava a um frango assado que não tivesse passado pelo forno, um pedaço de
comida sem relação para mim muito óbvia entre o que via na cozinha e o que dias
antes vira no quintal, o coelho esfolado revelava a natureza dos corpos vivos,
uma proximidade assustadora com a consciência que tinha do meu próprio corpo
pelas imagens que espreitava em livros de ciências. Enquanto a minha mãe ia
puxando a pele, que saía inteira como quando me tirava as camisolas de lã pela
cabeça, ia-se revelando a anatomia do animal e os tecidos musculares, os ossos
a aflorar — uma infra-estrutura biológica, se assim se pode dizer, demasiado
mamífera para que eu pudesse escamotear a similitude com a minha própria
fisicalidade.
E contudo
esses momentos violentos e insuportáveis não chegavam para que eu ficasse com
uma ideia negativa da minha mãe, para que sentisse menos afecto por ela.
Tacitamente, fomos acordando que eu evitava a cozinha nessas manhãs e que ela
não voltava a tentar convencer-me da naturalidade do abate dos animais. Mais
tarde tornei-me vegetariana, mas durante muitos anos ainda comi com prazer
carne, apaziguando a minha consciência com a ideia (fantasiosa) de que o país
evoluíra e os métodos de abate de animais eram então indolores e os bichos eram
conduzidos ao matadouro com tacto, sem stresse, depois de terem passado os dias
da sua curta vida em quintas bucólicas que sabia serem meras e escassas
excepções. Criei com o mundo uma relação semelhante à que tinha com a minha
mãe, preferindo ignorar o lado negro ou a violenta e cruel natureza da
sobrevivência.»
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